domingo, 8 de novembro de 2015

UNIVERSIDADE BRASILEIRA - “LIBERDADE ACADÊMICA E OPÇÃO TOTALITÁRIA”

Há poucos dias, chegou a minhas mãos uma raridade, a qual todos os brasileiros deveriam ter acesso, inclusive em horário nobre televisivo, o livro “LIBERDADE ACADÊMICA E OPÇÃO TOTALITÁRIA – Um Debate Memorável”, de Antonio Paim, editado no ano de 1979, quando o Brasil vivia os estertores do regime ditatorial imposto em 1964.

Ao ler, chamou-me atenção o paradoxo: o Brasil, por um lado, experimentava os ares da distensão do regime político militar, com a aprovação da Lei de Anistia em agosto de 1979; enquanto, por outro lado, a universidade se entregava desbragadamente ao totalitarismo do pensamento único imposto pela vulgata marxista-leninista.

No livro, desnuda-se a perseguição totalitária a professores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que não rezavam pela cartilha da vulgata, por outros professores, departamentos universitários, entidades docentes e discentes, todos os meios justificados pelo fim único: a dominação totalitária da universidade.

A propósito, transcrevo a introdução do livro, para melhor compreensão daqueles que se dispuserem a conhecer melhor por que o sistema de ensino no Brasil tornou-se o lixo ideológico atual.

INTRODUÇÃO

1. Os Eventos

O Jornal do Brasil do dia 14/3/1979 publicou uma carta da profa. Anna Maria Moog Rodrigues, endereçada ao Chefe do Departamento de Filosofia da PUC-RJ, na qual protesta contra a censura de um texto do prof. Miguel Rale, a ser incluído numa coletânea para servir de material didático ao curso da disciplina História do Pensamento, ministrada por cinco professores, entre os quais a autora da carta. A seleção dos textos que integrariam a coletânea foi efetivada em comum pelos responsáveis incluindo Platão, Aristóteles, Marx, Sartre e três pensadores brasileiros, um deles o autor censurado. A discriminação era de responsabilidade do Chefe do Departamento, alegando divergências com a atuação política do prof. Miguel Reale. “Por considerar este ato arbitrário e cerceador da liberdade acadêmica”, a profa. Anna Maria apresenta o seu pedido de exoneração do Corpo Docente da PUC. Ao transcrever esta carta, o Jornal do Brasil indicou que, assim, vinha a público uma crise existente naquela Universidade, remontando-se a carta anterior de outro professor – dirigida ao Reitor e que não fora tornada pública -, em que manifesta sua estranheza diante da preferência unilateral pela metodologia marxista.

O mesmo jornal do dia seguinte insere uma carta do Diretor do Departamento de Filosofia em que informa ter decidido que o texto “não fosse incluído numa apostila oficial do Departamento, face ao caráter polêmico e controvertido das atividades políticas do prof. Reale”. Afirma ainda que não havia “conveniência do Departamento realçar uma figura controvertida nos meios universitários, especialmente entre alunos”. Deste modo, a chefia do Departamento assumia a responsabilidade pela censura e atribuía-lhe razões políticas, o que vinha corroborar a alegação da profa. Anna Maria Moog Rodrigues para afastar-se do Corpo Docente da PUC.
A edição subseqüente do Jornal do Brasil (16/3/1979) transcreve nota do Reitor da PUC-RJ em que se solidariza com o Departamento de Filosofia, considera infundadas as acusações da profa. Anna Maria Moog Rodrigues, ridícula a afirmativa de existência de crise e faz questão de reafirmar que “nem por isto a Universidade se afastará de sua missão de despertar a responsabilidade de seus professores e alunos”. A mesma matéria que contém essa nota abrange ainda carta do prof. Antonio Paim, do mesmo departamento, igualmente desligando-se da PUC, a declaração da profa. Anna Maria Moog Rodrigues de que, tendo sido a censura reconhecida de público, reafirma a sua discordância com tal procedimento e seu afastamento da instituição.

Todos os textos mencionados constam deste livro.

Nos dias subseqüentes a matéria ocupou posição de destaque na imprensa. Outros professores da PUC denunciaram o clima de discriminação ideológica ali vigente. Os principais jornais do país condenaram – em editorial igualmente anexados a esta coletânea – o fato da censura como contrário à liberdade acadêmica.

Na semana de 19 a 23 de março, viu-se na PUC-RJ um espetáculo deveras assustador e que não pode ser esquecido porquanto revela a audácia do grupo totalitário, estimulado naturalmente pelo apoio que lhe emprestou o Reitor. O espetáculo em causa transcende aquela instituição e, por isto mesmo, deu origem a toda uma meditação que este livro pretende refletir.

O mesmo grupo do Departamento de Filosofia, ora apresentando-se como Associação de Docentes, ora como uma sociedade de filosofia que havia constituído, ora como entidades fantasmas de estudantes, lançou em campo a tática de distorcer os fatos, quebrar a solidariedade do Corpo Docente, caluniar e denegrir, e, finalmente, como disseram, mas que caberia denominar com mais propriedade de “auto-de-fé” medieval, quando os heréticos eram queimados na fogueira.

O chefe do Departamento de Filosofia lançou nova nota à comunidade acadêmica em que não mais fala em censura ao texto do prof. Miguel Reale nem nas razões que a determinaram, e tenta apresentar os professores demissionários como achando-se a serviço de objetivos escusos. No mesmo tom se pronunciou a Associação de Docentes, para a qual “o irrelevante episódio da organização de uma apostila de textos” foi “habilmente aproveitado para servir aos propósitos de uma ofensiva ideológica”; “sob a aparente defesa do pluralismo filosófico, esconde-se o inconformismo com as coisas novas”... etc. etc. As notas das entidades fantasmas dos estudantes condenavam com veemência o afastamento de professores, que ocorrera no passado, e enxergavam na atual denúncia conivência com aquelas arbitrariedades. Mobilizaram-se estudantes para interromper aulas e dar essa versão dos acontecimentos e ainda para gritar “slogans” nos pátios. O documento da Associação de Docentes foi lido em coro. Desceu-se a um nível tão baixo de acusações rasteiras que o próprio Jornal do Brasil foi acusado de ter interesses em terrenos na periferia da PUC; correram-se abaixo-assinados contra o projeto de fazer passar no interior da PUC uma estrada... Os acusados tiveram naturalmente que revidar. De sorte que o objeto mesmo da disputa ficou de fato bastante ofuscado. Para a opinião pública restou a impressão de que a PUC-RJ havia coletivamente realizado o que em seguida se denominou de opção totalitária.

Em nota aparecida nos jornais do dia 24/3, adiante transcrita, o Reitor encampa a tese de ter-se desencadeado uma campanha contra a PUC; não diz uma só palavra de condenação à censura. Apesar disto, fez apelo ao desarmamento dos espíritos e ao término dos ataques pessoais e ressentimentos, que teve o efeito de paralisar os promotores desses ataques dentro da Universidade. Passa então a primeiro plano o debate de toda a problemática envolvida na questão. Esta coletânea tem justamente o propósito de refleti-lo.

Antes de passar à indicação das grandes linhas do debate conviria indicar as verdadeiras razões da censura.

2. O Autor Censurado

Explicando as razões da censura, o chefe do Departamento de Filosofia da PUC indicou que não havia conveniência de “realçar uma figura controvertida nos meios universitários, especialmente entre alunos”. E como se incumbiu de explicitar um dos defensores da censura, o caráter controvertido do autor censurado prender-se-ia à sua condição de ex-integralista.
Em que pese a alegação, a esquerda brasileira não está preocupada com a condição de ex-integralistas daquelas personalidades que se converteram à sua opção totalitária, mesmo porque toda a sua “linha de frente” é constituída na atualidade por antigos expoentes do sigma como Alceu Amoroso Lima, Helder Câmara, Roland Corbisier etc. A circunstância explica, aliás, o boicote a que foi submetido o livro recente de Jarbas Medeiros – Ideologia Autoritária no Brasil (1930/1945), Rio de Janeiro, FGV, 1978, prefaciado por Raimundo Faoro – onde estuda o pensamento de Alceu Amoroso Lima, ao lado de Plínio Salgado, Francisco Campos, Oliveira Viana e Azevedo Amaral.

As restrições ao prof. Miguel Reale não se vinculam ao passado, mas ao presente.

Participando na série de depoimentos que O Estado de São Paulo tem organizado, o prof. Reale teve oportunidade de indicar que o integralismo se compunha de várias facções. A de Plínio Salgado, dominante, era eminentemente católica, inspirando-se na doutrina social da Igreja, o que era reconhecido pelos que então a representavam. Alceu Amoroso Lima teria oportunidade de afirmar: “Se há realmente vocação política, confesso que não vejo outro partido que possa, como a Ação Integralista, satisfazer tão completamente às exigências de uma consciência católica que se tenha libertado dos preconceitos liberais”.

Afora essa vertente católica, majoritária, havia uma segunda corrente que vinha do socialismo que se proclamava anticapitalista e antiburguesa. Chegou a nutrir a convicção de que a primeira fase do corporativismo – que era de participação popular e não meramente administrativo-burocrática, como acabaria consolidando-se na Itália – seria o caminho apto a facultar a desejada reforma social. Nessa vertente inseriam-se Miguel Reale, Santiago Dantas, Jeovah Mora e diversos outros.

Havia finalmente a terceira vertente, chefiada por Gustavo Barroso, e que receberia influência anti-semita. (O Estado de São Paulo, 14/5/1978, págs. 14 e 15).

De sorte quem tendo sido estudante marxista, Miguel Reale, entre 1933 e 1937, isto é, dos 23 aos 27 anos de idade, pertenceu ao movimento integralista. Desde 1940, quando ganhou o concurso para reger a cadeira de Filosofia do Direito da faculdade paulista – e publicou os livros Fundamentos do Direito e Teoria do Direito e do Estado -, ocupou-se de elaborar uma obra verdadeiramente monumental e que granjeou o reconhecimento internacional. Organizou e dirige o Instituto Brasileiro de Filosofia, em que coexistem todas as tendências filosóficas existentes no País, inclusive a marxista.

Teoria do Direito e do Estado, publicado em 1940, é talvez o primeiro livro no País a defender uma concepção do Estado de Direito a partir do pluralismo das entidades sociais, com uma crítica de todas as formas de estatismo jurídico.

No aprofundamento dessa compreensão, nos decênios desde então transcorridos, Miguel Reale chegou à doutrina contemporânea mais coerentemente elaborada do caráter inelutável da pluralidade de perspectivas filosóficas. Essa doutrina afirma não só que a filosofia comporta multiplicidade de perspectivas, e no interior destes diferentes pontos de vista, como igualmente que não há critérios uniformes, segundo os quais tem lugar a escolha de uma perspectiva. Assim, a partir mesmo do âmago do que poderia se constituir numa estrutura totalizante e totalitária – o saber filosófico – Miguel Reale refuta essa possibilidade.

A filosofia de Miguel Reale – batizada de forma muito apropriada, com o nome de culturalismo – afirma que são de índole moral os fundamentos últimos da evolução da cultura, razão pela qual as civilizações são odos de hierarquização dos valores. Em sua Filosofia do Direito, de que acaba de sair a sétima edição, teria oportunidade de escrever: “No desenrolar do processo histórico-cultural, constituem-se determinadas unidades polivalentes, correspondentes a ciclos axiológicos distintos, como que unidades históricas da espécie humana no seu fluxo existencial, a que denominamos de civilizações. A história da cultura não é, pois, unilinear e progressiva, como se tudo estivesse de antemão disposto para gerar aquele tipo de civilização que vivemos ou desejaríamos viver, mas se desdobra ou se objetiva através de múltiplos ciclos em uma pluralidade de focos irradiantes. ”

Graças à significação de sua obra, da atualidade e da universalidade dos temas com que se defronta, Miguel Reale logrou alcançar uma posição de grande prestígio no seio da comunidade filosófica e acadêmica dos países mais cultos da Europa e da América. Desde os anos cinqüenta, figura sempre entre os principais expositores nos Congressos Internacionais de Filosofia. No recente Congresso de Dusseldorf, Alemanha (1978), foi um dos quatro conferencistas oficiais. Nos últimos anos, sua Introdução ao Direito mereceu três edições sucessivas em língua espanhola. A Filosofia do Direito de Miguel Reale, do mesmo modo que Teoria Tridimensional do Direito acha-se traduzida em diversos países.

O que pesou afinal na avaliação do Departamento de Filosofia da PUC, o quinqüênio da década de trinta – que na verdade nunca estudaram e desconhecem inteiramente – ou a elaboração posterior de Miguel Reale, denominada de culturalismo, e à qual dediquei um pequeno livro – Problemática do Culturalismo (1977) – por sinal que publicado pelo próprio Departamento de Filosofia da PUC?
Tudo leva a crer que a oposição do Departamento é ao culturalismo. O que aliás é de todo compreensível, visto que corresponde à mais cabal refutação de todo tipo de totalitarismo e bem-sucedida fundamentação da pluralidade de perspectivas.

Além disto, o trabalho desenvolvido pelo IBF impediu a penetração no Brasil da denominada filosofia da libertação, que circula em outros países latino-americanos, sob o bafejo de importantes personalidades da Ordem dos Jesuítas. No Brasil, essa doutrina teve que apresentar-se como “teologia da libertação”, o que restringe de muito suas possibilidades de difusão. No mundo contemporâneo, se o interesse pela filosofia é cada vez mais restrito, o que não dizer da teologia...

3. O Debate e Suas Linhas

O debate do que se convencionou chamar de crise da PUC-RJ desenvolveu-se em diversas linhas, e esta coletânea não se propõe abrangê-las em sua inteireza.

Emergiu, de modo destacado, a preocupação com a influência marxista em muitas Universidades e na Igreja católica. Essa preocupação é compreensível, porquanto, sabidamente minoritária, os grupos marxistas ganham uma caixa de ressonância muito grande com a circunstância indicada.

Essa preocupação refletiu-se em notas aparecidas nos jornais, artigos, cartas de leitores etc. Expressam-na com propriedade o editorial do Jornal da Tarde, de São Paulo, doa dia 20/3/1979, sob o título de “A PUC, um dos últimos redutos do marxismo”, e o artigo “Quase inacreditável”, do prof. Jorge Boaventura (Folha de São Paulo, 28/3/1979).

O Jornal da Tarde observa que, na França, o marxismo é considerado ultrapassado, enquanto “na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro não só continua em moda, mas é instrumento para a prática de um autêntico terrorismo cultural”. O prof. Boaventura entende que os fatos denunciados correspondem apenas à ponta de um “iceberg”, cuja massa extravasa o ambiente universitário.

A questão de como enfrentar os comunistas e grupos afins, no plano político, embora diga respeito à plena configuração do projeto de convivência democrática que devemos conceber e implantar, não se apresenta dessa forma para o debate acadêmico suscitado pela censura ao texto do prof. Miguel Reale. Qualquer que seja a solução política do problema – cuja questão nuclear é a permissão ou não da existência legal do Partido Comunista – ao nível da Universidade o tema assume conotação diversa.

Assim, ainda que legítimo e de grande atualidade, o tema político não se constitui no eixo do debate em curso.

Outra questão emergente diz respeito à conceituação da Universidade Católica. O prof. José Artur Rios trouxe à baila esse tema no artigo intitulado “A Pontifícia Universidade (pluralista) Católica” (Jornal do Brasil, 24/3/1979). Essa questão, parece-nos, diz respeito exclusivamente aos católicos e não à comunidade acadêmica como um todo.

De todo o debate suscitado pela crise da PUC-RJ, esta coletânea pretende ocupar-se apenas da liberdade acadêmica e da opção totalitária.

4. A Liberdade Acadêmica

O cerne da liberdade acadêmica é a liberdade de cátedra, assegurada pela Constituição e pela tradição brasileira. Isto significa que nenhum Departamento tem o direito de imiscuir-se na matéria, que é da responsabilidade individual do professor. A Universidade pode, certamente, divergir da orientação que determinado professor tenha decidido imprimir à disciplina de sua responsabilidade e, neste caso, dispensar os seus serviços. Mas há de fazê-lo às claras. Essa questão foi considerada de modo abrangente nos artigos dos professores Aroldo Rodrigues e Vicente Barreto, bem como em editoriais da imprensa incluídos nesta coletânea.

Alguns mestres, entre os quais o prof. Luiz Alfredo Garcia-Roza, vieram a público para aventar a tese de que a liberdade acadêmica, como a definimos, é ilusória porquanto todo saber acha-se vinculado ao poder, está a serviço da classe dominante. Este texto, como os demais na mesma linha, acha-se igualmente transcritos, com exclusão apenas daquele de autoria do Sr. Luigi Moscatelli que, em artigo publicado no Jornal do Brasil, invocou a falsa qualidade de membro do Corpo Docente do Departamento de Filosofia da UFRJ, conforme desmentido que o prof. Paulo Alcanforado, chefe daquele Departamento, fez publicar no mesmo jornal em 5/4/1979.

O mencionado tipo de argumento insere-se no que o prof. Miguel Reale chama de vulgata marxista. A conceituação da ciência e das relações que guarda com a ideologia já arrastaram os marxistas a sucessivos debates, sem que seus partidários brasileiros deles se tenham beneficiado. Talvez o principal tenha sido o que ocorreu nos anos cinqüenta, desencadeado pelo próprio Stalin, ao indicar que nem todos os fenômenos da vida social assumem caráter de classe. Mencionou, então, expressamente, a língua e a técnica. No curso do debate a lógica formal, que tinha sido proibida na Rússia, voltou à legalidade. As simplificações de Lysenko – inventor de uma “biologia socialista” – foram condenadas a esta disciplina de novo conquistou “status” de ciência. Os soviéticos foram muito mais longe porquanto até mesmo a econometria e o keinesianismo passaram a ser reconhecidos como científicos. Por que os marxistas brasileiros não buscaram aprofundar esse debate e logo se agarraram às teses anarquistas, ressuscitadas nos anos sessenta, quanto ao caráter do saber? Esse desinteresse explica-se pelo fato de que o marxismo brasileiro tem uma dinâmica própria de desenvolvimento, caudatária da tradição positivista.

A ciência é o saber dotado de universalidade, que vale para todos. Seu modelo acabado é a física-matemática. A questão que se discute é a seguinte: não podendo a sociologia ser uma ciência apoiada em modelos matemáticos, é capaz de elaborar conhecimentos de validade universal? Presos à tradição positivista brasileira, certos professores nunca chegaram sequer a entender o que disse Max Weber. Ao reivindicar para o sociólogo a neutralidade axiológica, Weber não negou que a ação humana tivesse a marca do interesse. Apenas apontou os procedimentos através dos quais se pode estudá-la, preservados os requisitos que se atribui à ciência. A escola weberiana fez progressos notáveis em todos os países, inclusive no Brasil. Ignorando este fato, e supondo-se naquelas nações totalitárias onde o pensamento de Weber é proibido, os adeptos brasileiros da vulgata marxista falam em neutralidade, racionalidade, ciência, sem saber precisamente o conteúdo de tais conceitos e supondo que todos se encontram na mesma crassa ignorância. Somente essa circunstância poderia explicar tal primarismo.

A liberdade acadêmica supõe que tanto ao marxismo erudito como ao vulgar seja assegurado o direito de expressar-se livremente, no lugar próprio, isto é, no curso específico, onde esteja perfeitamente configurada a responsabilidade do titular. Para aqueles que se disponham a usar dessa liberdade com vistas ao proselitismo político, a Universidade dispõe de instrumentos aptos a coibir semelhante violação dos princípios éticos a que está obrigada a comunidade docente. No caso da PUC, embora seja quase certo que os totalitários formem a minoria, o incidente assumiu as proporções conhecidas graças exclusivamente à conivência do Reitor.

5. A Opção Totalitária

A crise da PUC serviu para evidenciar que, mais uma vez, em nossa contemporânea história, os intelectuais brasileiros facilmente se deixam empolgar pela opção totalitária. Quaisquer que sejam as razões de semelhante desfecho, o debate evidenciou que existe uma grande confusão entre totalitarismo e autoritarismo. A história desse século registra o aparecimento e a conversibilidade de regimes autoritários. Mas não há precedente de sistemas totalitários que tenham sucumbido, salvo o nazista, derrotado numa conflagração bélica. Cabe, pois, novamente reafirmar que a opção totalitária não corresponde a uma alternativa aceitável para o autoritarismo.

Talvez se possa dizer que a evolução da República brasileira, nestes noventa anos de existência, tem se dado no sentido da plena configuração do autoritarismo, que chega a dominar a máquina estatal em largos ciclos. É certo que, durante toda a República Velha, a política econômico-financeira inspirou-se nas idéias liberais da época; que os sucessivos estados de sitio se faziam com a aprovação do Congresso e que, em 1926, promoveu-se reforma constitucional que tinha como um de seus objetivos básicos acabar com a vitaliciedade do mandato de Borges de Medeiros na presidência do Rio Grande do Sul. Neste pós-guerra, tivemos a consolidação da Justiça Eleitoral, assegurando a lisura dos pleitos e períodos da mais franca democracia, como o Governo de Juscelino Kubitschek. Contudo, em que pese a presença dessa vertente, que porventura expressará as aspirações dos mais importantes contingentes da sociedade, o autoritarismo logra afirmar-se ao longo do período.

José Maria Belo apontou com rara felicidade o marco e as determinantes iniciais do processo em causa, ao escrever: “Ainda não libertos das tradições parlamentares do Império, os congressistas republicanos reivindicavam uma primazia política que violava a natureza do regime... O poder do Congresso e o poder do Presidente harmonizavam-se apenas nos artigos constitucionais; na realidade, não se entenderiam nunca. ” A oportunidade para inclinar a balança em favor do Executivo viria com o atentado em que morreu o Ministro da Guerra de Prudente de Morais, o Marechal Machado Bittencourt. Diz então Maria Belo: “O atentado de 5 de novembro dava-lhe (a Prudente de Morais) os elementos de reação que inutilmente procurara; dentro da própria órbita constitucional, o presidencialismo do regime adotado em 15 de novembro de 1889 revelava a tremenda soma de poderes que poderia enfeixar nas mãos do Presidente da República, e dos quais os seus sucessores saberão colher o máximo proveito.” (História da República, 6ª edição, pág. 150).

Wanderley Guilherme indicou uma das feições teóricas que veio a assumir, denominando-a autoritarismo instrumental, que tem em Oliveira Viana seu expoente máximo. Segundo este, o sistema liberal, para funcionar, pressupõe o respaldo de uma sociedade liberal. No Brasil, a sociedade é parenteral, clânica e autoritária. A farsa das eleições, o simulacro do liberalismo, tudo isto resulta da inexistência de agrupamentos sociais capazes de dar-lhe autenticidade. Desse diagnóstico, Oliveira Viana concluiria que o Brasil necessitava de um “sistema político autoritário, cujo programa econômico e político seja capaz de demolir as condições que impedem o sistema social de se transformar em liberal”. (Ordem Burguesa e Liberalismo Político, 1978, pág. 93).

Vê-se que essa premissa não é alheia ao autoritarismo, vigente na história brasileira dos três últimos lustros.

Assim, parece essencial compreender que a tradição autoritária da República brasileira é algo de muito palpável. Na República Velha consistia numa prática, ao arrepio da Constituição. No último meio século, vivemos a maior parte do tempo sob o signo do autoritarismo. Com a agravante de que a tentativa de eliminá-lo, neste pós-guerra, acabaria no mais absoluto fracasso. Não seria correto fazer caso omisso dessa dura realidade.

Na nova tentativa de abandono da tradição autoritária, em que ora nos empenhamos, os diversos grupos sociais têm o dever de posicionar-se e não apenas a classe política. Em relação aos intelectuais, o mais importante é estabelecer que ao autoritarismo se contrapõe o sistema representativo e não a opção totalitária. Semelhante colocação pode parecer ociosa, mas não é, pelas razões apontadas adiante.

A expressão acabada do totalitarismo é o estalinismo, porquanto fornece o modelo mais duradouro, consolidado não só na Rússia, mas igualmente no Leste Europeu e na China. Deixar de reconhecê-lo e limitar a condenação ao totalitarismo de tipo nazista corresponde a justificar a tese falsa de que os fins justificam os meios.

Consoante as análises de Arendt e outros estudiosos, o escopo essencial do totalitarismo é quebrar a solidariedade estruturada historicamente no seio das comunidades. Por esse expediente, estas se transformam em massa, manobrável e mobilizável para impedir o estabelecimento de qualquer forma de pluralismo. Partido único e aparelho repressor completam o quadro. Somente quem se imagina beneficiário de semelhante estrutura pode adotá-la. Quem quer que admita a possibilidade de vir a encontrar-se em oposição a tal sistema há de repeli-lo – até mesmo por instinto de conservação.
Por isto mesmo, a recente crise da PUC-RJ, suscita inevitavelmente a questão da esquerda democrática. O que se viu ali foi a emergência plena do espírito totalitário. Censurou-se um texto do prof. Reale. O chefe do Departamento de Filosofia veio a público para dizer não só que o fizera, mas igualmente que partira de razões ideológicas. Ao invés de discutir-se se aos Departamentos, mesmo por votação, deve ser atribuído o direito de imiscuir-se nos cursos, que são da responsabilidade dos professores, enfim, ao invés de discutir se se deve preservar a liberdade de cátedra, o que se viu na PUC foi o empenho de quebrar a solidariedade entre os membros do Corpo Docente, de transformá-los em massa. Os que se posicionarem em favor da liberdade acadêmica foram agredidos de todos os modos. Tal a confusão que se estabeleceu que, ao fim de contas, parecia que éramos nós os censores. Parece fora de dúvida que, naquela instituição, o espírito totalitário venceu em toda a linha.

Pode-se concluir do episódio que na PUC-RJ não há socialistas democráticos. Se os houvesse, certamente não teriam compactuado com a censura nem muito menos com a operação montada para denegrir a minoria divergente.

É lícito generalizar a conclusão? A pergunta não é extemporânea. O socialismo democrático no Brasil, pelo menos depois de 1930, tornou-se extremamente débil (o que corresponde, aliás, a uma das diferenças notáveis na evolução política e cultural do Brasil, em relação a Portugal, contemporaneamente). Embora ainda abrigasse, na última fase, intelectuais de renome e de grande integridade moral, como João Mangabeira ou Domingos Velasco, chegou a tornar-se agremiação política sem maior expressão. É provável que o último ciclo autoritário tenha contribuído para extingui-los de todo. Este será, pois, um dado importante da questão. A intelectualidade estará dividida entre liberais e totalitários, sem nenhuma camada intermediária que busque uma síntese mediadora, aceitando o socialismo, mas subordinando-o às instituições do sistema representativo. Rio de Janeiro, maio de 1979.
Rio de Janeiro, maio de 1979
Antonio Paim


Após ler essa introdução ao livro, escrita por Antonio Paim, no ano de 1979, passados 36 anos, alguém duvida de que a realidade é a submissão da universidade brasileira ao pensamento único, ao totalitarismo da vulgata marxista-leninista? E, o que é mais grave, que essa praga contaminou as instituições de ensino médio, fundamental e infantil, o Exame Nacional de Ensino Médio e todos os demais sistemas de avaliação?

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